sexta-feira, 1 de maio de 2009

Mulatidade a norma-padrão estético sócio-cultural em sociedades africanas de língua portuguesa pós-colonizadas.

O mulato dentro dos dois mundos (branco e preto), é o mais desolado, penso, pois é rejeitado de uma ou de outra forma. Pelo euro-europeu e pelo afro-africano, por ser um ser ambivalente, fruto de relações inter-raciais e por projetos políticos sociais por um lado pigmentocrático e processos histórico-ideológicos. Sendo um afro-europeu lhe foi incumbido papel central na manutenção das representações e imaginário escravista-colonial. Textos como de Willie Lynch 1711-12, e outros. Cientistas naturalistas, físicos, químicos, teólogos, padres, pastores e etc, comprovam essa tese. Termo usado para demarcar o território subjetivo e concreto dentro de sociedades marcadamente “pós-colonizadas”, no nosso caso as africanas de língua portuguesa. A hibridez étnico-racial aqui é analisada como categoria sócio-histórica racial porque sempre houve sua diferenciação entre os brancos e dos não brancos no período escravista político-jurídico e colonial. Então o que é a mulatidade: é o lugar de vantagem estrutural nas sociedades constituídas por uma estrutura de dominação étnico-racial. É o “ponto de vista”, o lugar a partir do qual o afro-europeu se vê e vê o afro-africano. É a ordem territorial nacional[1], é o lócus de elaboração e de exaltação de sua identidade e ancestralidade euro-européia. Marcadas previamente desde o século VIII até os dias de hoje. É o espaço cognitivo onde o mulato faz a vez do eu hegemônico, na falta deste, a partir desse lócus comumente redenominado ou deslocado dentro das denominações étnicas ou de classe, fortalecendo-se como marcador de fronteira entre ser branco e ser preto. Assim a mulatidade é o lugar de privilégio normativo.

A mulatidade é também entendida por nós como uma psico-sociopatologia. Segundo Adler o sentimento de inferioridade convive com o desejo de superioridade. A patologia-protesto do mulato consiste no “branco”, assim como não é branco segundo critérios arianos, afirma-se por duas vias: lembrando ansiosamente sua ancestralidade branco-européia e estudando o preto como um objeto, negando a ancestralidade preto-africana em sua constituição bio-subjetiva, ao lado de quem sua brancura é ressaltada. Assim a mulatidade enquanto conceito e local sócio-histórico que se define a norma nas sociedades que a hibridização tornou-se ela mesma sinônimo dessa solidariedade. Convertendo a hibridez no próprio obstáculo, o engodo afro e armadilha pantanosa onde só o euro-europeu a converteu em porto seguro e a partir do gozo, sabe caminhar.[2] 

Esse obstáculo epistemológico é o impedimento do conhecimento verdadeiro ficou claro e observado na polemica surgida após a divulgação da lista dos nomes que compunham a o Projeto da biblioteca angolana, projeto da Maianga Produções. Logo a mulatidade é mecanismo político-ideológico e retórico-racista adotado pela política psico-patológica eurocêntrica com o objetivo de certificar por meio dos ISO´s e eliminar as características específicas afro-africana. Mistificando as reais divisões político-sócio-culturais dos Estados “pós-colonilizados”. Supostamente, defensores das lutas e causas dos afro-africanos, que ao mesmo tempo se apresenta como espoliador, usurpador da fala do afro-africano que por sua vez se sente constrangido em ter uma fala menos universal e, mas de recorte étnico nas soluções de problemas que se apresentam universais, mas de características especificas e atuam de forma específica no tecido social, das sociedades multi-rraciais. O que levou a criação de obstáculos, mais perversos, que colocam o afro-africano em situação de inércia. Devemos levar em conta os séculos de doutrinação que começaram com o primeiro contato de forma mais real entre o branco e o preto, no período do expansionismo ocidental. No qual o euro-europeu se auto-colocou e definiu como o padrão de ego e norma estética. Este mecanismo de controle quase que automático por parte do homem vivent na mulatidade é quase que automático e ou incapaz de viver de acordo com seus ideais, por se dar na esfera da psique. Por mais que se apresentem como indivíduos desprovidos de preconceitos (não racista ou que se apresenta como tal), isso de ordem moral individual e não coletiva, o euro-europeu mantém um comportamento racista, pois vive e se vive em um mundo onde o ideal de ego é branco sob o guarda-chuva da branquidade que lhe confere toda a legitimidade. O espoliador, detentor de poder, adota, segundo suas necessidades, o procedimento de controle da produção coletiva, sem abordarem diretamente os usos e costumes do povo dominado, extraindo “somente” o produto do trabalho alheio ou, o que tem sido encontrado amiúde, a dominação econômica, política e cultural/religiosa. É este o processo de sonegação do direito à auto-afirmação, fruto de um processo de des-legitimação político-sócio-cultural em relação à África e ao afro-africanos, que a mulatidade se apóia.

O peso de sua historia dos costumes e conteúdo cumulativo nos confronta com toda a resistência de um objeto material. Talvez seja uma resistência ainda maior, pois o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível MOSCOVICI [2003]

Objetivando a construção de uma identidade única e nacional, a angolanidade[3], segundo a elite pensante e política angolana, deveria obedecer à ideologia hegemônica baseada no ideal do branqueamento a mulatidade (o etnocídio do preto). Dessa forma preso o mulato angolano míope pela mulatidade, em especial o escritor afro-europeu, apesar de arrolar sobre Angola, se orgulhar de seu povo e cultura, o faz usando uma linguagem e estética presa no olhar hegemônico branco-europeu. Cremos que por este motivos sejam os escritores de maior visibilidade no exterior, transferindo o arroubo inconformista para a afirmação dos valores nacionais[4]. Transfigura a natureza em valor, recupera os personagens míticos para reacomodá-los em esquemas condizentes com o projeto nacional, e descamba para o exótico. Onde a natureza se torna protagonista, possibilitando a união das raças (africana e européia): valorizando os seus, e restabelecendo o tempo da lenda, projetando os personagens na atemporalidade, em paralelo com o mitos euro-europeus, logo sucumbem à encomenda de exotismo por parte do Eu hegemônico. Porém a construção dessa unidade identitaria angolana, uma identidade dos excluídos[5], identidade essa onde a diferença representa uma ameaça a mulatidade enquanto lócus de privilégios demarcados para os interditos, constituindo-se desse modo um Estado-nacional de excluídos. Visando a inclusão de todos aqueles que se identificam e aceitam a mulatidade como lócus. Assim a multi-etnicidade é encarada como o vírus fatal a angolanidade, e é encarada não como uma mais valia enquanto o elemento de unificação dos homens a própria diferença da espécie.

 A mulatidade e des-legitimação da negritude


Segundo Sidi Askofaré, a escravidão é uma estrutura social que induz alguém a se ver como imagina ser visto pelo senhor
[6] ou como gostaria de ser visto por ele. Essa lógica põe o senhor[7] na posição ideal do Eu e leva o sujeito à auto-depreciação. E causa duas vertentes de patologia ao escravizado: primeira, há uma vertente negativa dos procedimentos simbólicos do avassalamento, de destruição, supressão, dissolução dos elementos (crenças, valores significantes) que constituíam a base subjetiva destas pessoas. Trata-se de uma espécie de tábua rasa, de desapossar aqueles homens de seus atributos de identificação, de fazer deles crianças neonatos, cuja data de nascimento coincidisse com a data de sua compra. Segunda, há por outro lado, uma vertente positiva dos procedimentos simbólicos do avassalamento que consistia na atribuição de uma identidade apócrifa e alienante (religião, língua do senhor ou língua que o senhor domina). Essa dominação simbólica culmina em uma dominação política, mais eficaz e perigosa, porque incidem sobre os corpos por meio da língua, da religião e também do laço afetivo, com as mulheres escravas, seus filhos que são propriedades do senhor, etc. Assim, o laço social de que são presos gera e reproduz a servidão, a submissão e o desmantelamento. A dominação simbólica[8] produz também efeitos no imaginário. São os efeitos sobre o narcisismo, o amor e apreço a si mesmo[9].

A independência e o pós-colônia, apesar da transferência política de brancos para pretos e mulatos, não representou a alteração da estrutura das relações sociais “a norma” na sociedade angolana. Da herança devastadora da colonização a independência nada conseguiu obter em relação à mudança da norma. A mulatidade é fruto claro da estrutura racialista e racista colonial herdada psiquicamente que se apresenta sob a forma do neo-racismo e uma neo-segregação em Angola. Já que a mulatidade é sinônimo de ser o padrão estético a norma. O que quer dizer que o mulato-branco, em regra geral, detém condição e vantagem simbólica e sócio-cultural melhor em relação ao preto. A estrutura sócio-cultural e simbólica entre branco-mulatos e pretos no período de “dominação” colonial, apesar da mudança no poder político-administrativa pós-independência, manteve-se e se mantêm praticamente inalterada em termos hierárquicos ao longo dos anos de independência: no topo da pirâmide, pretos assimilados e branco-mulatos, no meio os branco-mulatos e na base os pretos, perpetuando-se dentro da angolanidade. Logo em Angola ser branco-mulato e ou assimilado, em si já representa uma vantagem de cerca de 50%, dentro de imaginário e memória social a seu favor. Por outro lado ser etnicamente centrado é ter dificuldades maiores para viver e ocupar cargos e funções onde a aparência e estética é fundamental.

Nosso esforço aqui é senão é guiado pela preocupação do círculo vicioso que aprisiona o homem afro-africano em especial o angolano e pela tentativa de trazer a luz os dilemas desse círculo vicioso das formas e modo como se tem tentando forjar o Estado-nacional de forma perigosa e excludente nos moldes dos Estados-nacionais europeus do século XIX e inicio do século XX. Onde a negação de si mesmo por parte dos brancos nascidos em Angola, mulatos e pretos assimilados no que podemos ligar a idéia do bom selvagem, segundo MOSCOVICI:

Isso é assim, não porque ela (representação social/construções) possuiu uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque, como tal sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social sui generis. Quando mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é ideal, gradualmente torna-se materializado. Cessa de ser efêmero mutável e mortal torna-se, em vez disso duradouro, permanente, quase imortal. Quanto menos pensamos nelas, quanto menos conscientes somos delas, maior se torna sua influência MOSCOVICI [2003].

O que propomos neste estudo é o inicio imediato das discussões sobre estas relações ambíguas no seio da sociedade angolana, pois, caso assim não se faça, corremos o risco de conflitos inter-étnico-racial visto que ha sempre resistência cultural por parte de toda sociedade visto que a relação é dada por forma sujeito-objeto e objeto-sujeito. E que todo o grupo étnico quando de alguma forma se sente ameaçado, tem como lugar último e seguro de refúgio à sua identidade étnica e o extermínio do Outro se torna o caminho preferencial para solucionar o conflito gerado entre grupos étnicos distintos. Logo a minoria étnica corre o risco de sofrer um genocídio que, em Angola, os brancos e mulatos representam a menor parcela étnico-racial da população. Exemplos recentes nos Balcas, Rwanda e África do Sul, o Outro é sempre o bode expiatório.

Assim, o gesto de escrever para si e sobre si mesmo e possuir uma fala própria se torna capaz de proporcionar um momento prazeroso de autovalidação ao homem de cor. Eis aqui, portanto, uma revolução que me é adequado abraçar – ajudar minha sociedade a recuperar a confiança em si e a se desfazer dos complexos dos anos e infâmia e autodegradação KILLAM Apud APPIAH [2007].

 

Por: Nkuwu-a-Ntynu Mbuta Zawua



[1] Nação é uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana (ANDERSON, 2008, p. 32).

 [2] Obstáculo epistemológico é um impedimento ao conhecimento verdadeiro – um bloqueio criado pela própria ciência para se conhecer o objeto. Nesta caso, o mulato é um impedimento para se conhecer, de fato, a natureza das relações raciais no Brasil. Na verdade, não se trata do mulato, mais sim, do construção sociológica do mulato: a “saída de emergência” do sistema social que funcionaria como redutor de tensões raciais ou uma “válvula de escapa” para evitar as polarizações antagônicas entre pretos e brancos (CARONE In: BENTO e CARONE (org), 2007, p. 186).

[3] A angolanidade requer enraizamento cultural e totalizante das comunidades humanas, abarca e ultrapassa dialecticamente os particularismos das regiões e das etnias, em direcção à nação. Ela opõe-se a todas as variantes de oportunismo (com as suas evidentes implicações políticas) que procuram estabelecer uma correspondência automática entre a dose de melanina e a dita utenticidade angolana. Ela é, pelo contrário, linguagem  da historicidade dum povo (ANDRADE apud KANDJIMBO, 2000, p. 48).

[4] Na busca para construir uma nacionalidade e Estado-nação, o crioulo* e os europeus em conflitos com a Europa, imaginaram suas novas comunidades desligadas da metrópole, como mecanismo de negar e relegar os males do escravismo, e colonialismo como intrínsecas das metrópoles e não do Novo Mundo.

[5] A sociedade exclui para incluir e esta transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão. Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e dignos, no circuito reprodutivo das atividades, econômicas, sendo a grande maioria da humanidade inserida através da insuficiência e das privações, que se desdobram para fora do econômico. Na análise psicológica, essa lógica dialética inverte a idéia de inclusão social, desatrelado-a da noção de adaptação e normatização, bem como de culpabilização de coação. A lógica dialética explica a reversibilidade da relação entre subjetividade e legitimação social e revela as filigranas do processo que liga o excluído ao resto da sociedade no processo de manutenção da ordem. A dialética inclusão/exclusão gesta subjetividades específicas que vão desde o sentir-se incluído até sentir-se discriminado ou revoltado. Essas subjetividades não podem ser explicadas unicamente pela determinação econômica, elas determinam e são determinadas por formas diferenciadas de legitimação social e individual, e manifestam-se no cotidiano como identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência (SAWAIA (org), 2008, pp. 8-9).

[6] Ele [o cristianismo] estabeleceu a autoridade de senhores sobre seus servos e “escravos”, em uma dimensão tão grande quanto eles próprios poderiam ter prescrito... exigindo a mais estrita fidelidade... requerendo serviço com simplicidade de coração, para o lorde, e não para os homens... E é a partir da resistência encorajadora que ele não permite a eles a liberdade de se opor, ou de dar respostas desrespeitosas de seus senhores. E, remetendo-os à futura recompensa do céu, por seus serviços feitos para eles com fidelidade na Terra (GOSWYN apud DAVIS, 2001, p. 234).

 

[7] Para entender como tais construções ocorrem, o caminho lógico é examinar a linguagem, na medida em que é através dela que criamos e vivenciamos os significados. Na linguagem, está a promessa do reconhecimento; dominar a linguagem, um certo idioma, é assumir a identidade da cultura. Esta promessa não se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos “negros”. Mesmo quando o idioma é ”dominado”, resulta a ilegitimidade. Muitos “negros” acreditam neste fracasso de legitimidade e declaram uma guerra maciça contra a negritude. Este “racismo” dos “negros” contra “negro” é um exemplo da forma narcísica no qual os “negros” buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco. Eles literalmente tentam olhar sem ver, ou ver apenas o que querem ver (GORDON in: FANON, 2008, p. 15).

 

[8] Todo símbolo é o sinal de reconhecimento de sujeitos humanos, que partilham um mesmo “mundo-em-comum”. O símbolo não é uma representação de objectos, que é monopólio do signo, mas a representação social fundamental, enquanto evoca a memória da aliança originária, que dá sentido a cada encontro (RESWEBER, 2002, p. 32).


[9] ASKOFARÉ apud GERBASE, Jairo. Subjetividade, resistência e discurso: sintomatologia da escravidão “Sidi Askofaré”. In: Seminário de cultura negra e psicanálise das caravelas e tumbeiros ao hip-hop. Rio de Janeiro, IPDH 31/08 – 04/09/08. 

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